segunda-feira, 4 de novembro de 2013

Irma Vep (1996) - Olivier Assayas




Assayas constrói Irma Vep (idem, 1996) como em um jogo de espelhos, com sequencias que começam e terminam apenas por si mesmas, para então dar lugar à outras, e assim por diante. Esta linguagem, nada formal e essencialmente experimental é constituida por uma lógica narrativa que se auto-estabelece - e que, necessita de interação direta com espectador para seu funcionamento e completude. Isto é, pretende-se acima de tudo a conexão do espectador à realidade em que vive e a realidade virtual que presencia. Assayas o tempo todo brinca com essas possibilidades de relação entre o filme que produz e sua função/parentesco com a contemporâneidade. Bem como nas associações internas que se arrumam, resultando em discursos metalinguisticos, o que é de forma óbvio por sua natureza filme-dentro-do-filme.

É impressionante a riqueza de detalhes e congruências que Assayas espalha ao decorrer do filme, ainda que tudo corra da forma mais orgânica possível. Com um seguimento de cenas desprendido e decorrente só das ideias e justaposições organizadas em movimento. São varios fatores que somam em nossa visão e culminam nos mais variados tipos de reflexões: a contemporâneidade sempre acentuada principalmente na vertente cultural, na trilha sonora figuram Sonic Youth e Luna, o status-quo do cinema sempre comentado (Tim Burton, John Woo, Jackie Chan, etc), no olhar cosmopolitano à Paris mais brevemente (em cenas dinâmicas e com luzes evidentes, dentro do metrô, na entrada de uma boate com música eletrônica); o tour de force de Maggie Cheung, e substancialmente a representação de personas, estética e esteriótipos do cinema dentro do tempo e sua fama - o diretor francês em decadência (mas por Assayas um artista que se faz as perguntas certas), o cinema ornamental hollywoodiano, o cinema oriental de artes-marciais no seu auge, os profissionais de cinema excêntricos e as relações entre eles.

No mais, a história do cinema de acordo com tempo e disseminação, com heranças estilisticas (mais especificamente) sendo deixadas e absorvidas em diferentes pontos do tempo e localidades da pratíca cinematográfica. Melhor exemplo disso: a Irma Vep do filme seriado original Les Vampires (1915) interpretada por Musidora com roupagem e maquiagem predominantemente pretas, influenciando à Mulher-Gato de Tim Burton em Batman: O Retorno (Batman Returns, 1992) por Michelle Pfeiffer, que depois inspira a fantasia de Irma Vep do próprio Assayas com o material brilhante e apertado no corpo de Maggie Cheung.

Coexistir com esta modernidade, se assim preferir, é o que torna possível, os níveis e angulos que surgem e podem ser contemplados com a presença de Maggie Cheung. Atríz célebre pelos filmes de ação que fez nas décadas de 80 e 90, pelos inumeros trabalhos no cinema oriental e inclusivamente em Hong Kong (chamarei de Maggie sua personagem em Irma Vep, e Cheung ao me referir à própria atriz). Assayas dissertou sobre a experiência de acompanhar a atriz interpretando uma personagem em situações extremamente similares e peculiares à sua própria vida. Tal que ser uma estrangeira no set, responder a entrevistas - e Assayas deixou-a com uma disposição livre e espontânea na qual ela "apenas podia se deixar levar e reagir à situações enquanto aconteciam". Deste modo, o espectador vê em tela, assim como diz o diretor, uma personagem que oscila entre a autenticidade e a encenação. A brincadeira se realça na cena em que Maggie é entrevistada por uma jornalista irônico e que ferozmente critica o diretor de seu filme, em contraponto ao atual cinema oriental de artes-marciais (no qual compara a precisão das coreografias ao balé), então Maggie se esquiva do entrevistador (que acusa o diretor de fazer cinema apenas para a elite e aos intelectuais) e defende o diretor "tedioso" e decadênte com o qual trabalha. Obviamente, o efeito desta situação é muito mais efetivo aos espectadores do filme em sua época (e principalmente cinéfilos). Mas hoje seria como ver qualquer atriz/ator do mainstream norte-americano defendendo a arte de um diretor estrangeiro, peculiar e em insurgimento. Ou pelo simples fato de Cheung/Maggie interpretar um papel nada como os que faz regularmente - instância do espelho que Assayas faz do filme-contemporâneo.

Os códigos de Assayas não terminam neste aspecto, como também fazem várias e diversas alusões sobre cinema enquanto: arquitetura, tempo, industria, cultura, e ideologia. Assim como De Palma sempre remete às suas versões de cinema, Assayas iguala alguns de seus métodos durante Irma Vep e podem ser resumidos como (1) a evidenciação de que o cinema é primordialmente construção, uma fusão de ciência e instinto, objetos são movidos em cena, atores são posicionados e dirigidos, elementos constituem uma lógica discursiva e técnica para depois serem exibidos (2) mesmo que o espectador esteja ciente disso, isso em nada intervém na interação, e seu potencial continua o mesmo. O que torna Irma Vep um filme ambos sobre o ato de realização cinematográfica, como o de assisti-lo. E provalmente, existem ainda fenomênos que podem ser extraídos de em uma revisão. Essas ideias se concretizam na cena máxima de Irma Vep, na qual Maggie em meio crises de produção de seu filme, chega em seu quarto, veste o figurino de Irma Vep e sai pelo hotel sobre em uma ótica já fantasiosa e extremamente ficcional, digna de filmes de espionagem dos mais sofisticados. Ela sai pelo hall do hotel, invade um quarto de uma mulher, rouba uma jóia e sai em uma fuga precisa e refinada na chuva. Bem como diz muito sobre o artista e a necessidade de imersão em sua arte, narra uma reflexão da tensão dos sets de filmagem (calculado e previsto) à exterioridade (real e sem precedentes) refratando diretamente ao receptor a natureza do episódio sem contexto estético-narrativo algum (que bem poderia ser descartado): o espectador será capaz de imergir em qualquer possibilidade que um filme possa oferecer, mesmo que sem nenhuma lógica/sentido prévio. Esta pode ser vista como sua sequencia-sintese e definitiva de um dos filmes mais importantes e merecedidamente cultuado dos ultimos 20 anos.

9,5/10











segunda-feira, 16 de setembro de 2013

A Bela da Tarde (1967) - Luis Buñuel

                                 

Tantos são os precedentes de Buñuel como sendo, fundamentalmente, um cineasta de critícas e sátiras, que nem mesmo este escapa de esteriotipação. Este, bem como alguns outros exemplos de sua filmografia - leia-se O Bruto (El Bruto, 1953) e Nazarín (idem, 1959) -, são recorrentemente reduzidos à posicionamentos relacionados à religião, política e à burguesia. Particularmente, não acho à toa que os mesmos citados acima, estão entre os que mais simpatizo pelo diretor; por serem, essencialmente filmes sobre pessoas, onde também existe forte influência dos fluxos arredores, inclusive sobre estas personagens, no entanto, os focos estão nas ações, desenvolvimento, e visões que se realizam e nos proporcionam à partir destes papéis. Estes aspectos de visão singular do cinema de Buñuel poderiam vir a ser analizado mais à fundo, ou apenas, evidenciados mais à tona.

A interpretação do cinema de Buñuel é uma consequência de seu provável maior signo quando acionado, a sua subjetividade critica e sensível em relação ao comportamento humano individual ou coletivo (este ultimo englobando todos os outros aspectos que derivam deste macrocosmo) sendo representado com suprema veracidade e agressivididade. As metáforas e simbolismos são características por sua evidência, e por suas posturas decisivas. Mesmo assim, Buñuel foi reconhecido como um diretor que rejeitava várias das interpretações direcionadas à seus filmes, portanto, culpava o próprio mundo pelo o que veêm em seus filmes. Criava puramente à partir das conclusões do que via. O progresso da dessacralização, chegada da modernidade, ambiguidade do comportamente humano, reflexos sociais entre burguesia e miséria através dos tempos. Reinando uma visão particularmente pessimista e que como recursos, foi do surrealismo ao realismo; do próprio autor ainda existe de forma visceral a lenda, sua persona, suas ideias, preconceitos todos à deriva, e como o seu legado, seus filmes, escorregadios por suas naturezas ideológicas categóricas e apresentação frontal.

Em a A Bela da Tarde, Catherine Deneuve (no auge de seu título de simbolo sexual) interpreta Séverine, uma belissíma, e frustrada mulher casada com um médico, em uma relação limitada pelo receio da jovem em consuma-la. No entanto, curiosa sobre bordéis e assuntos relacionados começa a trabalhar em um bordel, e à partir disso, se relaciona com outras prostitutas, sua cafetina e seus clientes. Seria a segunda personagem de Deneuve em um curto período de tempo conectado ao tema de repressão sexual, e de forma como isso pode vir a afetar de forma terminante a saúde psicológica e emocional de uma pessoa. No filme anterior da atriz em parceria com Roman Polanski - Repulsa ao Sexo (Repulsion, 1965) - a consequência seria a psiconeurose.

Neste mesmo filme, Polanski desvela apenas em seu ultimo quadro a razão da inibição sexual de sua personagem. Buñuel não faz de forma tão diferente ao dar pistas do inicio desta condição de Séverine, inserindo dois flashes passageiros em sua narrativa: no primeiro, é acariciada e beijada de forma maliciosa por um homem mais velho, e no segundo, está na igreja quando pequena e recusa a aceitar a hóstia de seu padre. Logo realça traços de um passado de possível abuso sexual e opressão religiosa. Na fase adulta, expressa apenas nos seus pensamentos mais obscuros os seus desejos e fetiches, utópicos e irrealizáveis, em um matrimônio sem comunicação e em uma sociedade tediosa por demais e de aparências. Mas o foco de Buñuel não é a tipíca deformação de superficies sociais, mas sim do individuo, guiado pelos instintos, e que por baixo dos seus ternos e formalidades, também possui todos os tipos de porões imagináveis, dispostos à extravasar isso em bordéis e quartos assim que podem.

Nas cenas que registram o ato - preliminares, nas propulsões de fetiches -, Buñuel ainda expõe a patente controladora dos homens burgueses, dominadores e misógenos, não só eles, também o marginal que se torna intimo de Séverine, jovem, mas também violento e egoísta; e enquanto desmascara o homem, enaltece a mulher, enquadra e contempla Denueve no auge de sua beleza (são muitos os registros marcantes de imagem da atriz no filme, por serem tão elegantes, sensuais, e provocantes), além do mais, a atitude feminina independente e insubordinada. Séverine vai da dona de casa culpada e frigida, para uma mulher livre, conquistando autonomia e que usa de todas as sua ferramentas para ir até o desconhecido e também, ao próprio auto-conhecimento, não à toa, apenas após sua própria libertação pessoal, consegue engatar seu relacionamento, sendo que neste, nem mesmo existia.

Homoerotismo, necrofilia, adultério, fetiches. Mesmo na sutileza de sua grafia, técnica sutil (e voyeuristica), Buñuel (em seu trabalho de direção dos mais notáveis pelo dominio da mise-en-scène) fez o suficiente para ir até onde provávelmente nenhum diretor havia ido até então. Antes de De Olhos Bem Fechados (Eyes Wide Shut, 1999), A Professora de Piano (Le Pianiste, 2001) e outros, Buñuel já checava até os submundos mais inacessíveis da avidez pelo sexo, pelo anseio intenso das descobertas e rumos que o desejo descontrolado e a indefensabilidade pode levar. Quase sempre perigosamente auto-destrutivo. Afinal, atua-se na nudez plena, da carne e do interior, onde abdica-se do controle voluntariamente ou não e além dos limites do corpo, revela-se a vulnerabilidade instantânea e possivelmente fatal. Surreal ou não, está ali.

9/10





























                                         

terça-feira, 16 de julho de 2013

Barravento (1962) - Glauber Rocha























Um belissímo conto em formato de crônica cotidiana que fez Glauber Rocha antes de realizar sua grande e conhecida epopéia Deus e o Diabo na Terra do Sol (1964), e estranhamente o ultimo que vi do diretor após ver a maioria de seus trabalhos. Barravento é o primeiro esforço de Glauber em um longa-metragem, e são facilmente reconhecíveis vários dos aspectos de seu cinema que seriam ampliados nos filmes que o procedem, características de um gênio. Nada lhe deixando passar, absorvendo tudo o que está contido debaixo das superfícies, da realidade extraindo a nobreza, a fealdade e tudo o que é inerente.

Talvez Barravento seja relativamente menor aos filmes que Glauber viria fazer, mas é mais do que muitos diretores conseguem realizar em uma carreira, mais ainda em um trabalho de estréia. Barravento tem tudo de melhor que o cinema brasileiro chega a oferecer: a originalidade, o compromisso social, a identidade, a precisão e a força. E se isso não é o bastante, ainda temos a sensibilidade visual única de Glauber Rocha, os experimentos incisivos de montagem estendendo a experiência à outro patamar. Em algumas cenas justapõe o voice-over com as imagens da praia, em outra, a performance de um ritual entre moradores com batidas características de percussão paralelamente a uma cena de amor na praia. A poesia visual, em um plongê que contrasta a escuridão do mar "vilão" com a claridade da areia, com a influência desta forte oposição preto-e-branco típica do neorrealismo italiano e da liberdade e autenticidade da novelle-vague francesa, sempre buscando sobrepor o que é legitimo ao que é representação.

Barravento é alienação versus identidade (definição que estou roubando de Ismael Xavier em seu artigo sobre o filme, texto que pode ser facilmente encontrado pela internet em pdf). Na aldeia de pescadores em xéreu onde se passa a história, só existe a miséria extrema, essa sendo encarada passivamente pelos moradores, em um cotidiano que afora a força de trabalho garanta dolorosamente a sobrevivência, a vida e a dignidade desejadas acima disso, não chegam através dos rituais e orações. A personagem de Firmino (por Antonio Pitanga), ex-morador que retorna em um fim de semana chega como uma possível tomada de consciência, afrontando essa passividade consensual entre os homens dali, que vêem este estilo de vida como regra impossível de ser combatida. À partir disso, Glauber Rocha desenvolve um crescendo dramático sutil e belo, se assemelhando a evolução que passa Manuel em Deus e o Diabo na Terra do Sol e Paulo Jardel em Terra em Transe (1967), estes personagens (no caso, Aruã) sendo particularmente afetados pelas influências que recebem e pelos eventos que os dirigem gradualmente até outro nível de percepção, até a liberdade.

Neste percurso, Glauber é a antena que capta inteiramente o âmago desta comunidade. A relação com o candomblé, o atrito entre as posições socias, a alienação e dependencia religiosa, a lógica escravista entre os trabalhadores e o senhor do local. Filma a praia e seu aspecto de imensidão, como um recanto existencial aos solitários e casais, Glauber abduz todo o aspecto humano de sua história, a afeição; seja ela entre parentes e amigos, como para os amantes. A luta para se relacionar, e da forma como até nisto, a miséria e o fluxo de conflitos estorva. Esta cultura singular apresentada de modo operístico: a luta entre Firmino e Aruã sendo realizada pela capoeira, e esta sendo filmada àgil e virtuosa. Glauber, assim como Sganzerla, registrando um Brasil sem omitir sequer um fio de cabelo, da sua exterior extensão até o seu núcleo, carregando esta temática de pobreza extrema até o resto de sua filmografia como "artista do terceiro mundo", se posicionando incansavelmente contra esta condição histórica e transcontinental, em O Leão de Sete Cabeças (1971) reduzindo seus personagens simbólicamente às suas posições politicas, à maquinas de interesse humano presentes em todos os lugares e tempos (daí o titulo das "sete cabeças"), e no máximo de seus experimentos em Cabeças Cortadas (1970), filmando o outro lado da história, sobre um ditador latino-americano atormentado e nostalgico, fundiu surrealmente diferentes civilizações e figuras populares históricas no mesmo espaço como verdadeiros fantasmas.

- Breve comentário sobre Glauber Rocha, Rogério Sganzerla, a forma como registraram o país, e sua importância.

Glauber e Sganzerla eram diferentes, mas não tão diferentes assim em alguns aspectos. Enquanto a mitica de Sganzerla impõe uma visualização anárquica e improvisada aos seus filmes, seus roteiros e arquivos apontam um caminho diferente, para um diretor disciplinado e que sabia bem o que queria filmar e instruir, ainda que sim, deixava espaço para coisas serem realizadas livremente. Sua filha, Sinai Sganzerla diz em um depoimento sobre como seu pai era concentrado com sua maquina de escrever, e determinado quanto a seu material.

Ambos vanguardistas, Glauber operando de modo sofisticado e quase barroco, Sganzerla no pastiche, na ironia e adentro a cultura pop brasileira. Determinados igualmente à desvelar o Brasil sob o cartão postal, o lado bonito, feio, nobre, profano. Sem Essa Aranha (1970) despindo a comunidade e a pobreza pela imagem como dispositivo maior e absoluto, pela dialética visual revoltada de pessoas (onde papéis se confundem, ator, figurante, equipe) todos se tornando um só, agindo, gritando, falando de tudo em meio à miséria. Do rural ao urbano (e com Barravento, até o litorâneo), de Barravento à Cancêr (1972) e Copacabana Mon Amour (1970), a chanchada nas metrópolis, ainda gritando e não querendo prestar ensinamentos, só atrás de um pouco de nossa atenção.

quarta-feira, 29 de maio de 2013

Terapia de Risco (2013) - Steven Soderbergh



Mesmo quem pouco conhece de Steven Soderbergh, reconhece na sua trajetória uma miscelânea curiosa. Particularmente, da sua obra recente, só (re)conheço de relance alguns filmes que porventura não pude terminar as sessões. Contágio (Contagion, 2011), A Toda Prova (Haywire, 2011), ambos atraentes à seu modo. É notável, exclusivamente em A Toda Prova, a égide que traz a imagem, na qual parece até solarizada, valendo comentar também a simetria calculadissíma dos planos, ao capturar as lutas bem ensaiadas. De toda forma, não deixa de ser muito interessante acompanhar as transformações que passam artistas através dos anos, ao que nos cabe ao menos tentar embarcar sempre com a mesma disposição revigorante. Este último, nada parecido, por exemplo com o filme que lançou Soderbergh primeiramente (e venceu a tão cobiçada Palma de Ouro em Cannes), Sexo, Mentiras e Videotape  (Sex, Lies, and Videotape, 1989), de temática dramaticamente carregada, mas que no fim, não tão desafiador quanto aparentava, a previsibildade na atitude de seus personagens, e com uma trama sem talvez nenhum ponto de dissolução poderoso o bastante, escrito no caso pelo próprio Soderbergh, e que ao menos gerou uma dramaturgia decente e interessante (e que demonstra a escolha do diretor pelo caráter alternativo de seus projetos).

Steven Soderbergh é dos mais céticos e descontentes com o estado atual do cinema. Declaradamente e definitivo como a palavra ocupou seu discuro no Festival Internacional de Cinema de São Francisco, sobre como os estúdios mal-distribuem e acolhem projetos, com uma lógica comercial aguda e arbitrária (e que para ele, pragmaticamente falando também, faz pouco sentido). No mais, uma visão sobre o que no seu ponto de vista é considerado Cinema, e o que são considerados simplesmente "filmes", no qual o primeiro é algo feito seguindo um ponto de vista,  produzido por autores de forma livre e autêntica, e que isso não necessáriamente precisa vir no formato de filme, podendo ser um vídeo do Youtube ou até algum comercial. Completando que sem o autor, estas obras não existiriam, e se existissem, seriam totalmente diferentes. Dito isso, é dedutível que Soderbergh está mais interessado do que nunca em Cinema, que para ele é algo único como uma impressão digital ou uma assinatura. Mesmo tendo dito que iria se aposentar, depois disse que o fato era menos dramático, e que passaria a realizar filmes de forma mais sabática.

No caso de Terapia de Risco (Side Effects, 2013), Soderbergh disse que foi decidido logo cedo, que seria vendido como um thriller, desviando um pouco do foco social, "no qual trata-se o problema de muitas pessoas tomarem pilulas", segundo ele. Com certeza, Terapia de Risco está muitissímo longe de um "suspense psicológico" como é anunciado aos quatro ventos; os efeitos colaterais no qual Terapia de Risco se focam são extra-mente e corpo individual, estamos falando de um efeito-dominó causado pelos conflitos de interesses humanos, e corporativos. À partir daí, tudo fica mais digno de atenção. Tanto pela obliquidade sabiamente aplicada pelo diretor, quanto pelo projeto estético seco e moderno que dispõe.

Essa salada de genêros, camadas e disfarces em Terapia de Risco, no ato de assistir se confunde muito bem entre a irregularidade e a intenção consciente dos efeitos disso, de andar fora dos trilhos. À todo momento, fica clara a influência de Hitchcock e do filme-noir no clima de intriga e investigação, na sua intertextualidade refletindo vertentes particulares do mundo contemporâneo. Logo na introdução (com a câmera se descolando diante de um edifício, até encontrar seu destino especifíco), remetendo à Psicose (Psycho, 1960), nos dando a impressão que estamos presenciando um recorte, dentro vários acontecimentos cotidianos acontecendo simultâneamente; adentramos em um apartamento com rastros de sangue no chão, e iniciamos a nossa investigação. À propósito, se Soderbergh fosse o mais novo oriundo de Hitchcock, seria o mais de acordo com a atualidade, o mais hodierno com sua virtude imediata e fria de filmar e fotografar, e com sua obra retratando com observação especial, diferentes assuntos e problemas aos quais podemos nos identificar; se distanciando do teor mitológico, folclórico, sobrenatural e principalmente espiritual de M. Night Shyamalan e mais ainda da ficção extremizada, gráfica e reverente de De Palma, em Terapia de Risco, nada é cartunizado ou tão voyeurístico, e talvez seja por isso que nunca há a total imersão interativa entre espectador-filme.

"Li em algum lugar que existe diferença entre uma lágrima de alegria e de raiva, é possível saber quimicamente, mas não pelo olhar" - Emily Taylor (Rooney Mara)
 
Contudo, o experimento lhe permite a amálgama de estilos e a difusão deles em tela. A imagem em sua continuidade e justaposição resultam em curiosas representações. Uma aparente revêrencia noir após uma cena de assassinato, um fade-to-black da cena para logo depois, emergirem em tela policiais investigando e um corpo sendo lacrado. Nas cenas de revelação por flashback, e relocações espaciais de cenas (que ganham novos pontos de vista), utiliza muito bem da montagem como recurso formal e revela a imagem como dispositivo contraditório e não-confiável; de caráter dos personagens e do filme em geral, que ganha novas dimensões.

O roteiro de Scott Z. Burns é pontual e eficiente (colaborador habitual de Soderbergh). Jamais se propõe a estudar personagens, mas sua estória depende deles. Pois eles fazem parte e são ideias e elementos direcionados à reflexão; não são arquétipos, e direcionam à situações-reflexo indentificaveis e críveis - no caso, referentes à mafia farmacêutica e outros conflitos corporativos - onde Burns busca outro estudo (e mais importante do que qualquer relato documental que ele poderia ter feito, explicando detalhadamente sobre o funcionamento corrupto destas organizações), dirigindo a relevância de sua análise à decadência moral deste grupos com estratégias anti-éticas e desumanas, com interesse, obviamente, ao capital. Além do mais, Terapia de Risco, com seu fluxo mutante, mas nunca anódino (fazendo observações tão sutis como relances) também apresenta sem sublinhamento em pról da ficção e do espectro mirabolante que a estória possibilita, leis burláveis e esquemas conspiratórios em cima da trama de crime; é só o que preenche o quadro de Soderbergh, um paroxismo interminável e cercante.

8,5/10












sexta-feira, 22 de março de 2013

A Besta Humana (1938) - Jean Renoir




















Inebriante e pulsante. Renoir mais do que nunca se mostrando como um precursor de neologismos cinematográficos, mas aqui não retrata nenhum auto-social (mesmo sempre que seus personagens sejam sempre movidos por impulsos passionais e à dialogos de níveis humanos). Os microorganismos comunitários são agora a mente, o corpo, o olhar, e não mais estudamos contextualizações históricas, politícas, sociais, mas sim as variáveis mais complexas que movem o mundo e seus meios, com conflitos intrinsecos, o individuo humano. O fogo sendo alimentado inaugura A Besta Humana (La Bête Humaine, 1938). E à toda velocidade, também. Renoir está sempre querendo enaltecer o que comove um momento. No inicio, em um recorte de cotidiano de um "ferroviário qualquer" intepretado por Jean Gabin e seu amigo de trabalho, acompanhamos o mecanismo de um trem em movimento, depois embarcamos nele, entramos em um túnel; à princípio ainda pouco enxergamos, depois e durante alguns segundos, nada vemos. É estar sempre à mercê, até finalmente chegarmos à um destino final.

Em A Besta Humana, o cinema vai do mais puro lúdico (de um thriller de personagens envolvendo paixão, adultério e manipulação) com o dispositivo da imagem em sua forma mais discursiva, no espectro de feições e apelos sensoriais de cinema expandido e altamente interativo, até ao ponto mais intimista e determinista de leitura, no qual entra seu aspecto mais pessoal, a união da mentira sendo dita em tela, e ao mesmo tempo com uma irônica e diabólica iluminação over no rosto da femme-fatale, que a descara sem piedade, ou em outra cena (agora sem dialogo algum) um zoom vertiginoso vai aos poucos se fragmentando (de uma imagem inicialmente embassada) em direção ao olhar cínico da personagem. A Séverine de Simone Simon, não é exatamente bonita, nem confere a simetria das bonecas de porcelana de Hollywood, mas é enaltecida à todo momento pelas conotações pervertidas (que às vezes se consumam) de Renoir - à todo tempo exalando desejo e sexualidade. 

Tamanho senso de fluxo, A Besta Humana se aproxima de uma evolução de Aurora (Sunrise: A Song of Two Humans, 1927), o revolucionário filme de Murnau, menos ingênuo e mais sombrio, com a espacialização de ambientes considerando sua beleza ou não, de todo modo, à exploração de sua natureza. Do universo corpulento simbólicamente conectado à todo instante com seus personagens; da lama à noite enternecedora. A trilha-sonora é à todo tempo motor ao caos labiríntico de A Besta Humana, é amor e perdição no mesmo suspiro, soa sempre intensa à medida que as notas chegam ao clímax com os pratos batendo, dimensionalmente à todo aquele inferno pessoal, assim é melodrama customizado e subvertido, descabido ao conto nada homérico, mas sempre com a mesma densidade. 

Os personagens são sempre vítimados pelas circunstâncias. Notávelmente pode ser analisado, na cena em que Jacques tem um colapso e tenta enforcar a ex-amante, depois sendo impedido pelos próprios estímulos quando passa o trem, ele solta a amante, e após o corte, agora em um plano geral (e sensibilizado pela trilha-sonora estonteante de sensação desestabilizadora), anda cambaleando até sentar, e logo atrás, vem caminhando sua ex-amante, em busca de compreensão. Mesmo com o momento belissímo, e a sábia justaposição de imagens propostas por Renoir, Jacques já é desvelado por signos maiores, de sua própria natureza como figurado pelo título, e por não resistir às mentiras de uma mulher fatal, até abrir os olhos e levar tudo ao abismo, após um longo e ciclíco percurso de degradação. No fim, suas qualidades técnicas são irretocáveis e vanguardistas, e a sua humanidade vertiginosa e até inconstante causa estranheza, e aparentemente, um grande efeito de subjetivação. Se trata de um dos mais efetivos utilizadores do raccord no cinema.

9.5/10
 














domingo, 17 de fevereiro de 2013

O Lado Bom da Vida (2012) - David O. Russell



Ao narrar a história de um ex-professor do ensino médio que após um incidente desenvolve um distúrbio bipolar, agora lutando para consertar sua vida morando na casa dos pais, David O. Russell se diz comovido e se identificar. O filho do diretor é estudante da escola Devereaux Glenholme, que atende o ano inteiro integralmente pessoas de nove à dezoito anos com vários tipos de déficits. Assistindo O Lado Bom da Vida (Silver Linings Playbook, 2012) fica dificil não levantar algumas questões, nem mesmo entrando na vida pessoal do realizador. Trata-se do profissional em pauta, pouco ou incrívelmente talentoso. Com sucesso, atendendo demandas, assim como Alexander Payne, Jason Reitman, diretores e especialistas em fragrâncias e entorpecentes.

Em O Vencedor (The Fighter, 2010) é mais evidente, ainda há o aspecto urbanista e familiar do cinema de Russell, mas a essência é a mesma, um verdadeiro circo de artifícios. Da mesma forma que o irmão drogado interpretado por Christian Bale, as personagens de Bradley Cooper e Jennifer Lawrence vão zarpando no mesmo mecanismo de reiteração familiar e social, mas na verdade, a luta é com eles mesmos. Russell rejeita os dialogos, para configurar as emoções de seus personagens e do tom que segue o filme basta colocar uma música de fundo durante uma encenação de dança, olhares e sorrisos. Para representar a confusão familiar, arma um espetáculo de histeria, pueril na maioria dos casos, e como no filme todo, todas as ações das personagens não são baseadas nas suas construções como pessoas reais - mas que funcionam como arquétipos práticos -, mas sim para atingir os instintos de quem assiste, depois de x vem sempre y, sempre como previsto. Não há verdade na tela, se há, é pouco, não raro temos a sensação de não estarmos acompanhando uma história de verdade, com excessos de coincidências e transformações.

A apresentação de seres-humanos imperfeitos, os momentos dolorosos e as suas consequencias no agora. Não falta proposta, falta um pouco mais de coração e alma. Mas Russell não faz esforço para sair da mediocridade - no roteiro faz o básico, na direção, enfeita. O elenco, contudo, está bem e adiciona um espirito de espontâneidade que tanto lhe falta. Bradley Cooper está afinado e é bom ator (até que se possa provar mais em um trabalho mais digno), mas assim como Jennifer Lawrence não consegue tirar tanto do texto baratinado - repleto de frases de efeito e definições lacônicas de personalidade. A atriz até consegue hipnotizar com sua presença, disfuncional, agressiva e sensual - mesmo acima do tom em algumas cenas -, apesar de, no fim das contas, sua personagem (uma ninfomaniaca que recebe tratamento chulo que pouco expressa essa condição), é oriunda de tantas do cinema indie norte-americano que surgem através dos anos - enigmática, meio menina, meio mulher, tais como a Summer de (500) Dias com Ela ((500) Days of Summer, 2009) ou a Jordana de Submarine (idem, 2010) - e com todos os pesares, a melhor coisa do filme. Figuras cuja função se reduz à um sedutor objeto de atração, o que nos faz querer constantemente decifra-las, a desmistificar a razão de seu fascínio, o que funciona até certo ponto, como tudo no filme. Já Robert De Niro apesar de expressivo e presente em tela como usual, parece repetir o mesmo papel que faz a anos, com os mesmos cacoestes de um carcamano emburrado e agregado de familia. A atriz Brea Bee, que interpreta a esposa de Bradley Cooper que o traiu, se sai bem em ser paga para aparecer em menos de dois minutos de filme (sem ter foco em nenhum momento), mas afinal em um filme que só faz tirar, seria dificil crer que algo ali poderia ser aprofundado ou acrescentado.

Ir assistir à um filme de Russell é saber que tudo que irá se projetar jamais colocará a mão na lama, ou te surpreenderá com uma cena mais forte, com uma poesia mais elaborada, que todo momento dramático será quebrado por uma piada ou uma solução fácil, que após o fim da tempestade virá a bonança. No fim, os personagens em outrora presos agora conseguem seguir em frente na vida após o climax final  - em um bem-bolado narrativo tão sintético que dão ao filme um triunfo duplo. Como fizeram isso, nunca realmente sabemos, fora um concurso de dança, umas doses de vodka, um olhar e depois uma epifânia, ter tido a sorte das apostas terem dado certo em mais das felizes ocasiões da vida. O que é amargo pouco lhe terá gosto perto das incursões incrívelmente fatidicas e atalhadas do lado bom da vida, de David O. Russell, que em linhas gerais funciona, e lhe trará um sorriso no rosto, mas que ideologicamente, nesse pique nunca passará disso. Mas afinal, o cinema também é feito de ilusão e de mentiras.

6,5/10













terça-feira, 8 de janeiro de 2013

Django Livre (2012) - Quentin Tarantino



O cenário do faroeste tem vida própria, mas incompleta. É o contorno que se une geneticamente aos personagens que o habitam, e o pertence. É tão protagonista, oportuno, sua alma material formada pelas terras, montanhas, colinas, rios, brisas, saloons, vagões e diligencias são tão tangíveis quanto aos chapéus e revolveres envolvidos no cowboy que lá perambula; um acordo não comentado de dependência, que na maioria das vezes, nem mesmo almeja a civilização, e sua inevitável e temida chegada, só a vida isolada (mas coletiva) de seus corpos em um relacionamento de busca e destino. Se tratando de Tarantino, o epítome desta união e existência é puro hedonismo. O diretor dirige-se diretamente até o período apogeu do gênero (1858, dois anos antes da Guerra Civil), e desfruta de sua privilegiada produção, para ratificar sua obsessão pela dicotomia entre o excesso e o histriônico já muito perceptível (ainda que de certa forma, contida, e menos brilhante, se comparada com a de alguns outros filmes seus) introdução, que já se porta em reverência nos letreiros vermelhos de fonte nostálgica e remetente à vários clássicos do gênero e na axiomática música tema composta por Luis Bacalov e Rocky Roberts , e no fim, na força de um triunfo, que na sua pretensa, deve superar todo filme já feito; porém, não exatamente na grandiosidade da ação, mas da forma como é apresentada.

Foram quatro anos de espera para o novo filme de Quentin Tarantino, que mais do que nunca, busca zelar vigorosamente à sua filmografia. Agora, tendo esse tempo chegado, Tarantino teve finalmente sua oportunidade de realizar um western (ainda que o diretor tenha chamado o filme, devido sua ambientação no extremo sul, de southern), sendo esse seu gênero favorito, e no qual já declarou que a vontade sempre esteve contigo em realiza-lo. Como não poderia deixar de ser, Django Livre (Django Unchained, 2012) é uma enorme mistureba. Para começar ao fato que o protagonista (e é claro, o título) de seu filme sejam uma homenagem direta ao filme de Django (idem, 1966) de Sergio Corbucci, tendo sua trilha sonora pelo célebre mestre Ennio Morricone e várias peças de música utilizadas no filme supracitado originalmente, além de tocar músicas de Johnny Cash, John Legend, RZA e Rick Ross (ou seja, desde o folk, música sulista até, pasmem, o hip-hop). No mais, um fato a ser elogiado é a surpreende exteriorização do faroeste predominantemente no primeiro ato, se tornando também um road-movie, algo que se transforma drasticamente em relação aos seus outros filmes narrativamente, e também é marca de uma clara e corajosa evolução do diretor  (que também volta a homenagear o blaxploitation). As locações passam pela California, Wyoming e no parque histórico nacional Evergreen Plantation na Loiusiana e possuem as imagens mais lindas e poderosas da carreira do diretor. Passando por montanhas geladas, enormes campos de trigo e gramados, e as mais vastas áreas rurais. O que torna o filme em si, olhado por um ponto de vista mais romântico, de certa forma, algo maior, até se comparado com outros filmes do diretor. Richard Richardson (responsável pela cinematografia e colaborador habitual de Tarantino desde Kill Bill: Vol. 1 [idem, 2003]) merece aplausos e torna cada quadro exterior de Django Livre, uma visão de paraíso de um híbrido fabulístico gigantesco e tocante, a imagem como uma oração em tom aquarela que substitui as granulações dos clássicos, suas imagens sempre solarizadas e radiantes, e suas sombras que nunca superexpõem o seu conteúdo, dando vida a constituição sagrada dos mais solenes planos que o faroeste pode oferecer: como o cowboy cavalgando na linha do horizonte como um vulto emblemático no pôr-do-sol. Plantas de algodão manchadas de sangue (dos ferimentos que ainda esguicham descontrolavelmente e formam um balão de sangue), explosões e tiroteios no amanhecer estelar e outros insights visuais que Tarantino deslancha, revigorando a experiência visual do gênero de forma jamais vista e tornando Django Livre (certamente imperdível para ser visto no cinema), possivelmente a incursão mais policromática e visualmente visceral dentre todos os faroestes.

Para Tarantino, ainda interessa recortar a ação ao invés de necessariamente acompanha-la. Dito isso, o faroeste do diretor é dirigido através de motivações humanas, que ainda seguem os velhos códigos de honra do pistoleiro. Mesmos nos filmes mais banais do western, seus personagens são sempre movidos por alguma coisa. Poder, dinheiro (ou ouro), vingança, resgate. Afinal, nesse universo cíclico de vida no faroeste, o motor da trama narrativa é sempre uma quebra de rotina desencadeando violência e guerra, e geralmente com a familiarização desse cotidiano indiferente que tem essa característica justamente aqui, que adiciona de suas influências de sagas nórdicas e de antigos contos morais que vão perdendo sua inocência e estigmatização com os westerns spaghettis de Leone e Corbucci. A personagem de Dr. King Schultz, (por Christoph Waltz, que na primeira instância pode até parecer com o já antológico Hans Landa de Bastardos Inglórios [Inglorious Basterds, 2009], agora mais seguro, e por que não, ainda mais expressivo e monstruoso nas suas minuciosidades que permanecem roubando cenas), é um personagem que brada á essa circunstância do gênero, de luta pelo poder e na violência que libera sintomaticamente mesmo que longe de situações-limite. Django Livre assume essa condição. É filme de um homem só. Não exatamente vilão, não exatamente mocinho, mas uma personificação humana de motivação furiosa, sempre carismática, mas perigosa e violenta. Iconoclasta da ética da civilização. E Jamie Foxx faz o dever de casa (sendo que em nenhum momento está acima do tom ou chega a incomodar, justamente pelo contrário, é um personagem forte, e real, além de gerar todos os melhores momentos do filme no ato final). A sua volta, a roupagem de um faroeste legitimo (e não releitura), com a decadência de suas figuras em razão das mesmas condutas que os dão vida, no primitivismo da violência que os auto-destroem dando lugar a eclosão de uma sociedade, agora institucionalizada e regrada das grandes metrópoles, sem os cartazes de wanted dead of alive e recompensas aos assassinos caçadores de recompensa. Na exuberância estilística de Tarantino, o interesse só existe no presente, mesmo quando todo esse mundo está um dia fadado ao fim. O desenho de som de Kris Fenske ecoa o estalo dos chicotes como o grito de todo um estádio, excluindo a sonoplastia genuína do que é realmente diegético, só interessa o gozo da ficção. As balas adentram os organismos com um som esbugalhado de frutas sendo amassadas. Boa parte da pós-produção é essencial na marca autoral que se estabelece no resultado final. À parte disso, Django Livre é ensaio. Golpes e tiroteios de movimentos radicais que dispensam efeitos especiais, a gesticulação e o estilo são concisos para que, conceitualmente, o excesso esteja conscientemente entre a veracidade e o tamancudo da ação, como bem a elegância ele conhece, é tudo um grande barato cinéfilo.

Tendo dito isso, existem consequências para toda essa exorbitância. Particularmente, é impossível deixar de dizer que o diretor perde a mão em determinados momentos - assim como tem feito na maioria de seus filmes em algumas situações. Enquanto a beleza não pode ser medida em cenas como Django vendo sua mulher no lago ao som de I Got a Name de Jim Croce e sabe-se que é um realizador diferenciado (em uma cena tão terna e bonita como não se via desde Kill Bill: Vol. 2 (idem, 2004), são alguns vícios que ainda se sobressaem (mais relacionado ao Tarantino escritor) como em certos casos alongar cenas que poderiam ser menores, ou a incisão de piadocas sem timing necessário para funcionar (observação que para os que se incomodam com o uso da palavra nigger [designação pejorativa para a descrição de pessoas negras em inglês], se afastem), bem como ainda retumbar (ainda que em menor proporção do predecessor Bastardos Inglórios) a própria marca de forma que não favorece sua potência cinematográfica, só adorna, e territorializa o próprio nome. É também o filme mais longo do diretor com cerca de 165 minutos, ou seja, ainda mais longo do que Pulp Fiction - Tempo de Violência (Pulp Fiction, 1994), ainda que na minha concepção o filme não sofra de nenhum problema de ritmo, e a longa duração se deva mais aos atalhos narrativos incluídos no terço final em caminho ao seu desfecho.

É realmente no terço final - com longos diálogos ao redor de uma mesa - e com todos os personagens principais do filme reunidos que o filme assume de vez a autoria do diretor, em uma longa conversação que roda em desconfianças, piadas, jogos e olhares com a cenografia tipica de uma casa rural tomada pelo aroma da madeira, dos cigarros e com a riqueza dos objetos em cena, (ainda que não supere o requinte do interior do cinema nazista de Bastardos Inglórios, por exemplo), que também inclui uma curiosa estátua atrás do personagem de Leonardo DiCaprio (genial e canastrão no personagem do cruel proprietário de terra e escravos Calvin Candie, firme e dominador de seu personagem, consegue proporcionar risadas e nervosismo na mesma cena sem esforço, com seu semblante sempre capaz de mutações imediatas e pronunciando com requinte os diálogos irônicos e exclamativos de Tarantino). É notável a bifurcação de cenários em Django Livre, tal como Tarantino consegue realizar um ato final quase inteiro em um ambiente fechado sem perder o ritmo, e mantendo-se ainda tão brilhante e auspicioso como no ato anterior, para quem assiste, o sentimento de estar sempre afoito é contínuo até mesmo depois de o filme perder todos os seus espaços, e sua liberdade, que agora deve ser conquistada. A cena final é simbolicamente um rito (que não deve ser contada), é uma dança após a labuta, uma celebração pelo cinema até com a iminência de seu fim, mas que acena com sorriso largo e em chamas; mas afinal é isso, isso é o que torna especial, é o que torna o ordinário, extraordinário.

8,5/10