terça-feira, 8 de janeiro de 2013

Django Livre (2012) - Quentin Tarantino



O cenário do faroeste tem vida própria, mas incompleta. É o contorno que se une geneticamente aos personagens que o habitam, e o pertence. É tão protagonista, oportuno, sua alma material formada pelas terras, montanhas, colinas, rios, brisas, saloons, vagões e diligencias são tão tangíveis quanto aos chapéus e revolveres envolvidos no cowboy que lá perambula; um acordo não comentado de dependência, que na maioria das vezes, nem mesmo almeja a civilização, e sua inevitável e temida chegada, só a vida isolada (mas coletiva) de seus corpos em um relacionamento de busca e destino. Se tratando de Tarantino, o epítome desta união e existência é puro hedonismo. O diretor dirige-se diretamente até o período apogeu do gênero (1858, dois anos antes da Guerra Civil), e desfruta de sua privilegiada produção, para ratificar sua obsessão pela dicotomia entre o excesso e o histriônico já muito perceptível (ainda que de certa forma, contida, e menos brilhante, se comparada com a de alguns outros filmes seus) introdução, que já se porta em reverência nos letreiros vermelhos de fonte nostálgica e remetente à vários clássicos do gênero e na axiomática música tema composta por Luis Bacalov e Rocky Roberts , e no fim, na força de um triunfo, que na sua pretensa, deve superar todo filme já feito; porém, não exatamente na grandiosidade da ação, mas da forma como é apresentada.

Foram quatro anos de espera para o novo filme de Quentin Tarantino, que mais do que nunca, busca zelar vigorosamente à sua filmografia. Agora, tendo esse tempo chegado, Tarantino teve finalmente sua oportunidade de realizar um western (ainda que o diretor tenha chamado o filme, devido sua ambientação no extremo sul, de southern), sendo esse seu gênero favorito, e no qual já declarou que a vontade sempre esteve contigo em realiza-lo. Como não poderia deixar de ser, Django Livre (Django Unchained, 2012) é uma enorme mistureba. Para começar ao fato que o protagonista (e é claro, o título) de seu filme sejam uma homenagem direta ao filme de Django (idem, 1966) de Sergio Corbucci, tendo sua trilha sonora pelo célebre mestre Ennio Morricone e várias peças de música utilizadas no filme supracitado originalmente, além de tocar músicas de Johnny Cash, John Legend, RZA e Rick Ross (ou seja, desde o folk, música sulista até, pasmem, o hip-hop). No mais, um fato a ser elogiado é a surpreende exteriorização do faroeste predominantemente no primeiro ato, se tornando também um road-movie, algo que se transforma drasticamente em relação aos seus outros filmes narrativamente, e também é marca de uma clara e corajosa evolução do diretor  (que também volta a homenagear o blaxploitation). As locações passam pela California, Wyoming e no parque histórico nacional Evergreen Plantation na Loiusiana e possuem as imagens mais lindas e poderosas da carreira do diretor. Passando por montanhas geladas, enormes campos de trigo e gramados, e as mais vastas áreas rurais. O que torna o filme em si, olhado por um ponto de vista mais romântico, de certa forma, algo maior, até se comparado com outros filmes do diretor. Richard Richardson (responsável pela cinematografia e colaborador habitual de Tarantino desde Kill Bill: Vol. 1 [idem, 2003]) merece aplausos e torna cada quadro exterior de Django Livre, uma visão de paraíso de um híbrido fabulístico gigantesco e tocante, a imagem como uma oração em tom aquarela que substitui as granulações dos clássicos, suas imagens sempre solarizadas e radiantes, e suas sombras que nunca superexpõem o seu conteúdo, dando vida a constituição sagrada dos mais solenes planos que o faroeste pode oferecer: como o cowboy cavalgando na linha do horizonte como um vulto emblemático no pôr-do-sol. Plantas de algodão manchadas de sangue (dos ferimentos que ainda esguicham descontrolavelmente e formam um balão de sangue), explosões e tiroteios no amanhecer estelar e outros insights visuais que Tarantino deslancha, revigorando a experiência visual do gênero de forma jamais vista e tornando Django Livre (certamente imperdível para ser visto no cinema), possivelmente a incursão mais policromática e visualmente visceral dentre todos os faroestes.

Para Tarantino, ainda interessa recortar a ação ao invés de necessariamente acompanha-la. Dito isso, o faroeste do diretor é dirigido através de motivações humanas, que ainda seguem os velhos códigos de honra do pistoleiro. Mesmos nos filmes mais banais do western, seus personagens são sempre movidos por alguma coisa. Poder, dinheiro (ou ouro), vingança, resgate. Afinal, nesse universo cíclico de vida no faroeste, o motor da trama narrativa é sempre uma quebra de rotina desencadeando violência e guerra, e geralmente com a familiarização desse cotidiano indiferente que tem essa característica justamente aqui, que adiciona de suas influências de sagas nórdicas e de antigos contos morais que vão perdendo sua inocência e estigmatização com os westerns spaghettis de Leone e Corbucci. A personagem de Dr. King Schultz, (por Christoph Waltz, que na primeira instância pode até parecer com o já antológico Hans Landa de Bastardos Inglórios [Inglorious Basterds, 2009], agora mais seguro, e por que não, ainda mais expressivo e monstruoso nas suas minuciosidades que permanecem roubando cenas), é um personagem que brada á essa circunstância do gênero, de luta pelo poder e na violência que libera sintomaticamente mesmo que longe de situações-limite. Django Livre assume essa condição. É filme de um homem só. Não exatamente vilão, não exatamente mocinho, mas uma personificação humana de motivação furiosa, sempre carismática, mas perigosa e violenta. Iconoclasta da ética da civilização. E Jamie Foxx faz o dever de casa (sendo que em nenhum momento está acima do tom ou chega a incomodar, justamente pelo contrário, é um personagem forte, e real, além de gerar todos os melhores momentos do filme no ato final). A sua volta, a roupagem de um faroeste legitimo (e não releitura), com a decadência de suas figuras em razão das mesmas condutas que os dão vida, no primitivismo da violência que os auto-destroem dando lugar a eclosão de uma sociedade, agora institucionalizada e regrada das grandes metrópoles, sem os cartazes de wanted dead of alive e recompensas aos assassinos caçadores de recompensa. Na exuberância estilística de Tarantino, o interesse só existe no presente, mesmo quando todo esse mundo está um dia fadado ao fim. O desenho de som de Kris Fenske ecoa o estalo dos chicotes como o grito de todo um estádio, excluindo a sonoplastia genuína do que é realmente diegético, só interessa o gozo da ficção. As balas adentram os organismos com um som esbugalhado de frutas sendo amassadas. Boa parte da pós-produção é essencial na marca autoral que se estabelece no resultado final. À parte disso, Django Livre é ensaio. Golpes e tiroteios de movimentos radicais que dispensam efeitos especiais, a gesticulação e o estilo são concisos para que, conceitualmente, o excesso esteja conscientemente entre a veracidade e o tamancudo da ação, como bem a elegância ele conhece, é tudo um grande barato cinéfilo.

Tendo dito isso, existem consequências para toda essa exorbitância. Particularmente, é impossível deixar de dizer que o diretor perde a mão em determinados momentos - assim como tem feito na maioria de seus filmes em algumas situações. Enquanto a beleza não pode ser medida em cenas como Django vendo sua mulher no lago ao som de I Got a Name de Jim Croce e sabe-se que é um realizador diferenciado (em uma cena tão terna e bonita como não se via desde Kill Bill: Vol. 2 (idem, 2004), são alguns vícios que ainda se sobressaem (mais relacionado ao Tarantino escritor) como em certos casos alongar cenas que poderiam ser menores, ou a incisão de piadocas sem timing necessário para funcionar (observação que para os que se incomodam com o uso da palavra nigger [designação pejorativa para a descrição de pessoas negras em inglês], se afastem), bem como ainda retumbar (ainda que em menor proporção do predecessor Bastardos Inglórios) a própria marca de forma que não favorece sua potência cinematográfica, só adorna, e territorializa o próprio nome. É também o filme mais longo do diretor com cerca de 165 minutos, ou seja, ainda mais longo do que Pulp Fiction - Tempo de Violência (Pulp Fiction, 1994), ainda que na minha concepção o filme não sofra de nenhum problema de ritmo, e a longa duração se deva mais aos atalhos narrativos incluídos no terço final em caminho ao seu desfecho.

É realmente no terço final - com longos diálogos ao redor de uma mesa - e com todos os personagens principais do filme reunidos que o filme assume de vez a autoria do diretor, em uma longa conversação que roda em desconfianças, piadas, jogos e olhares com a cenografia tipica de uma casa rural tomada pelo aroma da madeira, dos cigarros e com a riqueza dos objetos em cena, (ainda que não supere o requinte do interior do cinema nazista de Bastardos Inglórios, por exemplo), que também inclui uma curiosa estátua atrás do personagem de Leonardo DiCaprio (genial e canastrão no personagem do cruel proprietário de terra e escravos Calvin Candie, firme e dominador de seu personagem, consegue proporcionar risadas e nervosismo na mesma cena sem esforço, com seu semblante sempre capaz de mutações imediatas e pronunciando com requinte os diálogos irônicos e exclamativos de Tarantino). É notável a bifurcação de cenários em Django Livre, tal como Tarantino consegue realizar um ato final quase inteiro em um ambiente fechado sem perder o ritmo, e mantendo-se ainda tão brilhante e auspicioso como no ato anterior, para quem assiste, o sentimento de estar sempre afoito é contínuo até mesmo depois de o filme perder todos os seus espaços, e sua liberdade, que agora deve ser conquistada. A cena final é simbolicamente um rito (que não deve ser contada), é uma dança após a labuta, uma celebração pelo cinema até com a iminência de seu fim, mas que acena com sorriso largo e em chamas; mas afinal é isso, isso é o que torna especial, é o que torna o ordinário, extraordinário.

8,5/10