sexta-feira, 22 de março de 2013

A Besta Humana (1938) - Jean Renoir




















Inebriante e pulsante. Renoir mais do que nunca se mostrando como um precursor de neologismos cinematográficos, mas aqui não retrata nenhum auto-social (mesmo sempre que seus personagens sejam sempre movidos por impulsos passionais e à dialogos de níveis humanos). Os microorganismos comunitários são agora a mente, o corpo, o olhar, e não mais estudamos contextualizações históricas, politícas, sociais, mas sim as variáveis mais complexas que movem o mundo e seus meios, com conflitos intrinsecos, o individuo humano. O fogo sendo alimentado inaugura A Besta Humana (La Bête Humaine, 1938). E à toda velocidade, também. Renoir está sempre querendo enaltecer o que comove um momento. No inicio, em um recorte de cotidiano de um "ferroviário qualquer" intepretado por Jean Gabin e seu amigo de trabalho, acompanhamos o mecanismo de um trem em movimento, depois embarcamos nele, entramos em um túnel; à princípio ainda pouco enxergamos, depois e durante alguns segundos, nada vemos. É estar sempre à mercê, até finalmente chegarmos à um destino final.

Em A Besta Humana, o cinema vai do mais puro lúdico (de um thriller de personagens envolvendo paixão, adultério e manipulação) com o dispositivo da imagem em sua forma mais discursiva, no espectro de feições e apelos sensoriais de cinema expandido e altamente interativo, até ao ponto mais intimista e determinista de leitura, no qual entra seu aspecto mais pessoal, a união da mentira sendo dita em tela, e ao mesmo tempo com uma irônica e diabólica iluminação over no rosto da femme-fatale, que a descara sem piedade, ou em outra cena (agora sem dialogo algum) um zoom vertiginoso vai aos poucos se fragmentando (de uma imagem inicialmente embassada) em direção ao olhar cínico da personagem. A Séverine de Simone Simon, não é exatamente bonita, nem confere a simetria das bonecas de porcelana de Hollywood, mas é enaltecida à todo momento pelas conotações pervertidas (que às vezes se consumam) de Renoir - à todo tempo exalando desejo e sexualidade. 

Tamanho senso de fluxo, A Besta Humana se aproxima de uma evolução de Aurora (Sunrise: A Song of Two Humans, 1927), o revolucionário filme de Murnau, menos ingênuo e mais sombrio, com a espacialização de ambientes considerando sua beleza ou não, de todo modo, à exploração de sua natureza. Do universo corpulento simbólicamente conectado à todo instante com seus personagens; da lama à noite enternecedora. A trilha-sonora é à todo tempo motor ao caos labiríntico de A Besta Humana, é amor e perdição no mesmo suspiro, soa sempre intensa à medida que as notas chegam ao clímax com os pratos batendo, dimensionalmente à todo aquele inferno pessoal, assim é melodrama customizado e subvertido, descabido ao conto nada homérico, mas sempre com a mesma densidade. 

Os personagens são sempre vítimados pelas circunstâncias. Notávelmente pode ser analisado, na cena em que Jacques tem um colapso e tenta enforcar a ex-amante, depois sendo impedido pelos próprios estímulos quando passa o trem, ele solta a amante, e após o corte, agora em um plano geral (e sensibilizado pela trilha-sonora estonteante de sensação desestabilizadora), anda cambaleando até sentar, e logo atrás, vem caminhando sua ex-amante, em busca de compreensão. Mesmo com o momento belissímo, e a sábia justaposição de imagens propostas por Renoir, Jacques já é desvelado por signos maiores, de sua própria natureza como figurado pelo título, e por não resistir às mentiras de uma mulher fatal, até abrir os olhos e levar tudo ao abismo, após um longo e ciclíco percurso de degradação. No fim, suas qualidades técnicas são irretocáveis e vanguardistas, e a sua humanidade vertiginosa e até inconstante causa estranheza, e aparentemente, um grande efeito de subjetivação. Se trata de um dos mais efetivos utilizadores do raccord no cinema.

9.5/10