segunda-feira, 4 de novembro de 2013

Irma Vep (1996) - Olivier Assayas




Assayas constrói Irma Vep (idem, 1996) como em um jogo de espelhos, com sequencias que começam e terminam apenas por si mesmas, para então dar lugar à outras, e assim por diante. Esta linguagem, nada formal e essencialmente experimental é constituida por uma lógica narrativa que se auto-estabelece - e que, necessita de interação direta com espectador para seu funcionamento e completude. Isto é, pretende-se acima de tudo a conexão do espectador à realidade em que vive e a realidade virtual que presencia. Assayas o tempo todo brinca com essas possibilidades de relação entre o filme que produz e sua função/parentesco com a contemporâneidade. Bem como nas associações internas que se arrumam, resultando em discursos metalinguisticos, o que é de forma óbvio por sua natureza filme-dentro-do-filme.

É impressionante a riqueza de detalhes e congruências que Assayas espalha ao decorrer do filme, ainda que tudo corra da forma mais orgânica possível. Com um seguimento de cenas desprendido e decorrente só das ideias e justaposições organizadas em movimento. São varios fatores que somam em nossa visão e culminam nos mais variados tipos de reflexões: a contemporâneidade sempre acentuada principalmente na vertente cultural, na trilha sonora figuram Sonic Youth e Luna, o status-quo do cinema sempre comentado (Tim Burton, John Woo, Jackie Chan, etc), no olhar cosmopolitano à Paris mais brevemente (em cenas dinâmicas e com luzes evidentes, dentro do metrô, na entrada de uma boate com música eletrônica); o tour de force de Maggie Cheung, e substancialmente a representação de personas, estética e esteriótipos do cinema dentro do tempo e sua fama - o diretor francês em decadência (mas por Assayas um artista que se faz as perguntas certas), o cinema ornamental hollywoodiano, o cinema oriental de artes-marciais no seu auge, os profissionais de cinema excêntricos e as relações entre eles.

No mais, a história do cinema de acordo com tempo e disseminação, com heranças estilisticas (mais especificamente) sendo deixadas e absorvidas em diferentes pontos do tempo e localidades da pratíca cinematográfica. Melhor exemplo disso: a Irma Vep do filme seriado original Les Vampires (1915) interpretada por Musidora com roupagem e maquiagem predominantemente pretas, influenciando à Mulher-Gato de Tim Burton em Batman: O Retorno (Batman Returns, 1992) por Michelle Pfeiffer, que depois inspira a fantasia de Irma Vep do próprio Assayas com o material brilhante e apertado no corpo de Maggie Cheung.

Coexistir com esta modernidade, se assim preferir, é o que torna possível, os níveis e angulos que surgem e podem ser contemplados com a presença de Maggie Cheung. Atríz célebre pelos filmes de ação que fez nas décadas de 80 e 90, pelos inumeros trabalhos no cinema oriental e inclusivamente em Hong Kong (chamarei de Maggie sua personagem em Irma Vep, e Cheung ao me referir à própria atriz). Assayas dissertou sobre a experiência de acompanhar a atriz interpretando uma personagem em situações extremamente similares e peculiares à sua própria vida. Tal que ser uma estrangeira no set, responder a entrevistas - e Assayas deixou-a com uma disposição livre e espontânea na qual ela "apenas podia se deixar levar e reagir à situações enquanto aconteciam". Deste modo, o espectador vê em tela, assim como diz o diretor, uma personagem que oscila entre a autenticidade e a encenação. A brincadeira se realça na cena em que Maggie é entrevistada por uma jornalista irônico e que ferozmente critica o diretor de seu filme, em contraponto ao atual cinema oriental de artes-marciais (no qual compara a precisão das coreografias ao balé), então Maggie se esquiva do entrevistador (que acusa o diretor de fazer cinema apenas para a elite e aos intelectuais) e defende o diretor "tedioso" e decadênte com o qual trabalha. Obviamente, o efeito desta situação é muito mais efetivo aos espectadores do filme em sua época (e principalmente cinéfilos). Mas hoje seria como ver qualquer atriz/ator do mainstream norte-americano defendendo a arte de um diretor estrangeiro, peculiar e em insurgimento. Ou pelo simples fato de Cheung/Maggie interpretar um papel nada como os que faz regularmente - instância do espelho que Assayas faz do filme-contemporâneo.

Os códigos de Assayas não terminam neste aspecto, como também fazem várias e diversas alusões sobre cinema enquanto: arquitetura, tempo, industria, cultura, e ideologia. Assim como De Palma sempre remete às suas versões de cinema, Assayas iguala alguns de seus métodos durante Irma Vep e podem ser resumidos como (1) a evidenciação de que o cinema é primordialmente construção, uma fusão de ciência e instinto, objetos são movidos em cena, atores são posicionados e dirigidos, elementos constituem uma lógica discursiva e técnica para depois serem exibidos (2) mesmo que o espectador esteja ciente disso, isso em nada intervém na interação, e seu potencial continua o mesmo. O que torna Irma Vep um filme ambos sobre o ato de realização cinematográfica, como o de assisti-lo. E provalmente, existem ainda fenomênos que podem ser extraídos de em uma revisão. Essas ideias se concretizam na cena máxima de Irma Vep, na qual Maggie em meio crises de produção de seu filme, chega em seu quarto, veste o figurino de Irma Vep e sai pelo hotel sobre em uma ótica já fantasiosa e extremamente ficcional, digna de filmes de espionagem dos mais sofisticados. Ela sai pelo hall do hotel, invade um quarto de uma mulher, rouba uma jóia e sai em uma fuga precisa e refinada na chuva. Bem como diz muito sobre o artista e a necessidade de imersão em sua arte, narra uma reflexão da tensão dos sets de filmagem (calculado e previsto) à exterioridade (real e sem precedentes) refratando diretamente ao receptor a natureza do episódio sem contexto estético-narrativo algum (que bem poderia ser descartado): o espectador será capaz de imergir em qualquer possibilidade que um filme possa oferecer, mesmo que sem nenhuma lógica/sentido prévio. Esta pode ser vista como sua sequencia-sintese e definitiva de um dos filmes mais importantes e merecedidamente cultuado dos ultimos 20 anos.

9,5/10