terça-feira, 16 de julho de 2013

Barravento (1962) - Glauber Rocha























Um belissímo conto em formato de crônica cotidiana que fez Glauber Rocha antes de realizar sua grande e conhecida epopéia Deus e o Diabo na Terra do Sol (1964), e estranhamente o ultimo que vi do diretor após ver a maioria de seus trabalhos. Barravento é o primeiro esforço de Glauber em um longa-metragem, e são facilmente reconhecíveis vários dos aspectos de seu cinema que seriam ampliados nos filmes que o procedem, características de um gênio. Nada lhe deixando passar, absorvendo tudo o que está contido debaixo das superfícies, da realidade extraindo a nobreza, a fealdade e tudo o que é inerente.

Talvez Barravento seja relativamente menor aos filmes que Glauber viria fazer, mas é mais do que muitos diretores conseguem realizar em uma carreira, mais ainda em um trabalho de estréia. Barravento tem tudo de melhor que o cinema brasileiro chega a oferecer: a originalidade, o compromisso social, a identidade, a precisão e a força. E se isso não é o bastante, ainda temos a sensibilidade visual única de Glauber Rocha, os experimentos incisivos de montagem estendendo a experiência à outro patamar. Em algumas cenas justapõe o voice-over com as imagens da praia, em outra, a performance de um ritual entre moradores com batidas características de percussão paralelamente a uma cena de amor na praia. A poesia visual, em um plongê que contrasta a escuridão do mar "vilão" com a claridade da areia, com a influência desta forte oposição preto-e-branco típica do neorrealismo italiano e da liberdade e autenticidade da novelle-vague francesa, sempre buscando sobrepor o que é legitimo ao que é representação.

Barravento é alienação versus identidade (definição que estou roubando de Ismael Xavier em seu artigo sobre o filme, texto que pode ser facilmente encontrado pela internet em pdf). Na aldeia de pescadores em xéreu onde se passa a história, só existe a miséria extrema, essa sendo encarada passivamente pelos moradores, em um cotidiano que afora a força de trabalho garanta dolorosamente a sobrevivência, a vida e a dignidade desejadas acima disso, não chegam através dos rituais e orações. A personagem de Firmino (por Antonio Pitanga), ex-morador que retorna em um fim de semana chega como uma possível tomada de consciência, afrontando essa passividade consensual entre os homens dali, que vêem este estilo de vida como regra impossível de ser combatida. À partir disso, Glauber Rocha desenvolve um crescendo dramático sutil e belo, se assemelhando a evolução que passa Manuel em Deus e o Diabo na Terra do Sol e Paulo Jardel em Terra em Transe (1967), estes personagens (no caso, Aruã) sendo particularmente afetados pelas influências que recebem e pelos eventos que os dirigem gradualmente até outro nível de percepção, até a liberdade.

Neste percurso, Glauber é a antena que capta inteiramente o âmago desta comunidade. A relação com o candomblé, o atrito entre as posições socias, a alienação e dependencia religiosa, a lógica escravista entre os trabalhadores e o senhor do local. Filma a praia e seu aspecto de imensidão, como um recanto existencial aos solitários e casais, Glauber abduz todo o aspecto humano de sua história, a afeição; seja ela entre parentes e amigos, como para os amantes. A luta para se relacionar, e da forma como até nisto, a miséria e o fluxo de conflitos estorva. Esta cultura singular apresentada de modo operístico: a luta entre Firmino e Aruã sendo realizada pela capoeira, e esta sendo filmada àgil e virtuosa. Glauber, assim como Sganzerla, registrando um Brasil sem omitir sequer um fio de cabelo, da sua exterior extensão até o seu núcleo, carregando esta temática de pobreza extrema até o resto de sua filmografia como "artista do terceiro mundo", se posicionando incansavelmente contra esta condição histórica e transcontinental, em O Leão de Sete Cabeças (1971) reduzindo seus personagens simbólicamente às suas posições politicas, à maquinas de interesse humano presentes em todos os lugares e tempos (daí o titulo das "sete cabeças"), e no máximo de seus experimentos em Cabeças Cortadas (1970), filmando o outro lado da história, sobre um ditador latino-americano atormentado e nostalgico, fundiu surrealmente diferentes civilizações e figuras populares históricas no mesmo espaço como verdadeiros fantasmas.

- Breve comentário sobre Glauber Rocha, Rogério Sganzerla, a forma como registraram o país, e sua importância.

Glauber e Sganzerla eram diferentes, mas não tão diferentes assim em alguns aspectos. Enquanto a mitica de Sganzerla impõe uma visualização anárquica e improvisada aos seus filmes, seus roteiros e arquivos apontam um caminho diferente, para um diretor disciplinado e que sabia bem o que queria filmar e instruir, ainda que sim, deixava espaço para coisas serem realizadas livremente. Sua filha, Sinai Sganzerla diz em um depoimento sobre como seu pai era concentrado com sua maquina de escrever, e determinado quanto a seu material.

Ambos vanguardistas, Glauber operando de modo sofisticado e quase barroco, Sganzerla no pastiche, na ironia e adentro a cultura pop brasileira. Determinados igualmente à desvelar o Brasil sob o cartão postal, o lado bonito, feio, nobre, profano. Sem Essa Aranha (1970) despindo a comunidade e a pobreza pela imagem como dispositivo maior e absoluto, pela dialética visual revoltada de pessoas (onde papéis se confundem, ator, figurante, equipe) todos se tornando um só, agindo, gritando, falando de tudo em meio à miséria. Do rural ao urbano (e com Barravento, até o litorâneo), de Barravento à Cancêr (1972) e Copacabana Mon Amour (1970), a chanchada nas metrópolis, ainda gritando e não querendo prestar ensinamentos, só atrás de um pouco de nossa atenção.

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