sexta-feira, 17 de agosto de 2012

O Processo (1962) - Orson Welles




Se foi em Verdades e Mentiras (Vérités et Mensonges, 1973) que Orson Welles discorreu e sintetizou todas suas assertivas enquanto arte e cinematografia, através da linguagem paralela de ficção e documentario - e para depois, assumir a própria de condição de farsesco, com Welles trajado simbólicamente na figura de mágico ilusionista -, em nenhuma obra de sua filmografia, suas asserções fizeram mais sentido do que neste aqui, O Processo (Le Procès, 1962), seu cinema em estado agudo de perfeição. Também por ser o seu filme assumidamente narrativo ficcional que melhor se adequada às propriedades que o diretor veio a desmistifcar genialmente em Verdades e Mentiras, dispondo o duelo entre legitimo e falso, verdade e manipulação, para declarar e celebrar a ruptura de quaisquer que sejam a barreiras que o Cinema do próprio, e em geral um dia pode ter ostentado.

Para isso, Welles adaptou a obra-prima mais conhecida do grandessíssimo escritor Franz Kafka (o mesmo autor conhecido por A Metamorfose - outro pesadelo kafkiano -, e O Castelo), do livro homônimo, O Processo, cujo romance foi convertido para roteiro também por Welles. A transposição de Welles da obra para às telas responde apenas para os próprios impetos absortos - algo que sempre foi caracteristica alicerce do diretor (que acabou sempre tendo seus filmes editados por grandes estúdios). Enquanto assistimos O Processo, temos certeza de que tudo que vemos se apresenta apenas conforme às vontades de Welles, se deitando sobre todos os privilégios e subterfugios inimaginaveis que possui (com todo direito) como realizador. Agora, chegando à um ponto quase contíguo de liberdade criativa, ambição artistica e talento sublime que tinha em mãos, da figura ao mesmo tempo tão arcaica e visionária que sempre foi.

Aos mais desatentos, ou para quem acabou de chegar, pode aparentar o contrário, mas Welles nunca almejou mais longe (com êxito) em qualquer outro filme; nunca houve um abuso tão explosivo e latente de ambição e desbravação da linguagem que fora manifestado com mais força, antes ou depois. A diegese surge e caminha ponderadamente, e não há a menor pressa (a não ser que calculada) para aduzir à algo que
não tenha seu lugar devido. Até mesmo no inicio, dispensado créditos e apresentações, há um prefácio - com uma encenação grafica simplista e narrada em off por Welles de um trecho do livro O Processo (que depois se valerá de pura memória e artefato de força e significado no final de todo filme). Há uma sutileza e arranjo de detalhes de tanto requinte, que parece ser até acidente.

Para começar a tecer de vez sua técnica visual e narrativa, o quadro que abre o filme (cujo à principio parece imparcial e inocente), nos joga a primeira pista (do acordar, tanto de despertar para a vida, ou de abrir os olhos após um sonho ou pesadelo). O nosso personagem protagonista, Josef K (interpretado magistralmente por Anthony Perkins), que nada conhecemos, levanta-se da cama sendo acusado por dois policiais rudes, estranhos e intolerantes, é preso e levado para responder processo, sem aparentemente ter idéia do que é acusado. Nos remete a também obra-prima e pesadelo kafkiano de Hitchcock, O Homem Errado (The Wrong Man, 1956), no qual narra-se a história de um homem comum confundido com um assaltante de banco, que depois acaba sendo preso. Mas enquanto Hitchcock aposta em ratificar o próprio nivel de realidade na decorrencia de acontecimentos, do infortúnio crível, Welles resigna qualquer formato de realidade, interessa a denotação da visão de pesadelo, dos absurdos, numa verdadeira esquisitice em celulóide.

Tamanha a magnetude de minuciosidades, nos primeiros cinco minutos de filme, Welles já nos manda uma mensagem inconsciente. Roda toda sequencia inicial (em um conjunto residencial), para surtir agonia e desorientação, onde portas levam à ambientes distintos, há claridade excessiva, personagens bizarros e montagem frenética - assim como segue todo o filme. Em todos os ambientes, há uma disposição obtusa de objetos em cena, proporções, ângulos tortos que distorcem nossas impressões, e etc. Tudo em prol da sensação de ilusão e bizarria, como se Orson Welles estivesse ali, ao nosso lado, assistindo o filme, e rindo da nossa cara. A descrição estética do universo corresponde à todo proposito de Kafka.

A essencia da obra de Kafka permanece com o mesmo vigor no mundo opulento de Welles. A critica para com os atributos de justiça e ética dos processos e julgamentos nos tribunais - remontando ao estado totalitário no qual vivia Kafka. Josef K, passa pelas etapas de seu processo que extrapolam qualquer parcela de imparcialidade e moral, com busca para o motivo no qual está sendo julgado (ao passo que começa a ficar atordoado, á beira da loucura). Crianças dão depoimentos, advogados e juízes são indiferentes, policiais corruptos. O circo está armado. No mais, nada é realmente tangível, a qualidade metafisica da obra é ainda mais dimensional. Nem mesmo do nosso protagonista temos certeza, ele mesmo que se diz sentir-se culpado de coisas que não sabe ao certo se fez e que ao alegar inocencia, é respondido "inocente do que?"; seria culpado por não admitir a própria culpa? por falta de humanidade? Subentende-se uma relação com a prima menor de idade. Ademais, Josef K seduz (e é seduzido) por mulheres dúbias afim de propósitos individuais, pondo em cheque a genuidade de sua "inocencia".

O apologo catartico são se revela sobretudo na sua cena final. A parabola aponta à morte da moral, que se reflete nos piores dos pesadelos. Através de todas as linhas de artificio, Welles realiza seu filme mais enxuto, seu apuro cinematografico em função do espetaculo, a elegia energética diante das frações que cercam e diminuem o Cinema em formulas distantes. Mais do que em qualquer outro filme do cineasta, nessa interseção de verdades, Welles nos mostra e se enaltece ao que verdadeiramente foi: um mágico.

9,5/10




















Nenhum comentário:

Postar um comentário