quinta-feira, 26 de junho de 2014

Eles Voltam (2012) - Marcelo Lordello



O processo passado por Eles Voltam (idem, 2012) para finalmente chegar aos cinemas não foi fácil. Produzido em partes ao longo de 2010, passou por difíceis etapas em sua produção, finalização e distribuição, de forma que em 2012 chegou a ser exibido em festivais, e finalmente em 2014 chegou aos cinemas. Infelizmente, a produção audiovisual Brasil ainda passa por uma triste realidade, na qual realizadores independentes passam por trancos e barrancos para realizar suas obras, na esperança de conseguirem finaliza-los e distribui-los, na pobre condição de coexistir com o monopólio que rege o cenário brasileiro - cada vez mais padronizado e comercial, e consequentemente, limitado e pouco alternativo.

É uma verdadeira pena, pois, assim como em tantas outras áreas da arte, cinema é uma coisa que o brasileiro faz muito bem, e há muito tempo. As dificuldades sociais, de tal forma, é um tema recorrente do cinema nacional, bem como a realização de filmes independentes no país é historicamente marcante, feito na base do velho "ideia na cabeça e câmera na mão". Eles Voltam foi roteirizado inicialmente como curta-metragem, sobre solidão e sobrevivência. A futura conversão para longa-metragem trouxe a possibilidade da exploração de muitos outros temas diversos, a expansão do projeto tornou o filme algo único, filmado in loco em toda sua duração em realidades absolutamente opostas, com formato de uma odisseia íntima, cuja protagonista deve lidar com circunstâncias até então completamente desconectadas de sua realidade.

Como em uma subversão de gênero, a jornada da protagonista ocorre em uma configuração de fábula realista, com personagens legitimamente mundanos, em locações verdadeiras, vivendo a realidade sem ornamentos. A beleza da natureza e a autenticidade das locações substituem grandes cenários decorados, ou feitos por computação gráfica. Afinal, é uma questão de saber se apropriar das condições, e uma questão de método. Miyazaki contou estórias de amadurecimento infantil em dimensão animada. Em O Serviço de Entregas da Kiki (Majo no takkyûbin, 1989) assume uma perspectiva fantasiosa e singela no tratamento da protagonista, já em A Viagem de Chihiro (Sen to Chihiro no kamikakushi, 2001) entrega-se ainda mais a imaginação, e ao uso de simbolismos. Os irmãos Dardenne, em O Garoto da Bicicleta (Le gamin au vélo, 2011) se aproximam da ótica introspectiva, realista e alegórica que compõe o filme de Lardello, porém sem os comentários sociais, e com uma estética melhor modelada ao público geral. A lista é longa, muitos influenciados por Alice in Wonderland de Lewis Carroll.

Eles Voltam certamente figura entre os mais desafiadores a cerca do tema. Transpondo a fantasia pela realidade crua, é importante o olhar nas relações de poder e situação social e noções familiares. Atravessando uma caminhada relativamente curta, Cris é apresentada a outra face do mundo, que ela poderia conhecer através da mídia, mas que agora ela conhecerá de verdade, de perto. A humildade das moradias isoladas dos centros urbanos, o caráter hospitaleiro da pobre família que lá reside, a natureza da convivência neste âmbito. Lardello falou sobre sua experiência em visitas com estas comunidades. Do outro lado, a família da pequena burguesa, hiperprotetora, assustados com a possibilidade de contato da garota com o mundo exterior, mas que em um ato irresponsável a deixaram na situação que mais temiam.

Com isso, Cris, de 12 anos, é apresentada no inicio como uma garota dependente e assustada, com uma personalidade desconfiada e silenciosa. Após um curto período de vivência, assume uma nova disposição de conhecer o mundo que vive (o que não é uma mudança de personalidade, mas de comportamento), e uma postura independente, representada principalmente na simbólica sequencia em que não objeta em conhecer uma nova colega de classe, e que depois a leva à praia. Tornando-se quase um reflexo de seu irmão, sempre com seu celular, fones de ouvido, e em outra cena, jogando videogame. Não que os medos e a insegurança terminem por aí - como vemos nos momentos finais -, mas há definitivamente a transformação, o amadurecimento que chega a todos nós através do acaso e da observação - sexual, consciente, sensível -, o que é alegórico no plano final, representando a passagem para uma nova fase. Não são precisas muitas palavras.

Na internet, circulam muitos elogios, e também críticas ao filme - aquela coisa de sempre, reclamações sobre o ritmo do filme, em outra, sobre "inexpressividade da atriz", ou a má sonoplastia. Enfim, estamos falando de um filme cujo os silêncios e a observação paciente em cena é igualmente importante as ações e diálogos. Lordello desafia as convenções, absorvendo dos seus queridinhos de cinefilia - fã de Ozu -, filmando com calma e indulgência, normalmente os planos são muito perto ou longe, câmera na mão. Porém nada é injustificado, essa perseverança em observar todos os pequenos detalhes é algo importante na proposta de Lordello, e esse objetivo é atingido. Não se pode ignorar os méritos de Maria Luiza Tavares, ou Mallu como o diretor a chama, que interpreta a protagonista. Com certeza, é uma atuação juvenil da qual me lembrarei, a naturalidade e sutileza que apresenta é fundamental, e próprio ao filme, que supera a dificuldade financeira através da delicadeza no qual foi feito, com atores não profissionais (algo que jamais torna-se um problema), belíssima trilha sonora sempre complementando as cenas (clássico de Milton Nascimento logo no inicio). Um filme para ser celebrado por diversas razões, em uma época no qual o trabalho independente já deveria ser muito mais viável, e o cinema brasileiro é ainda visto com preconceito por seu próprio público.

8,5/10












    

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