quarta-feira, 16 de julho de 2014

Sob a Pele (2013) - Jonathan Glazer


















Texto com spoilers.

Foi uma surpresa que, chegando aos 30 minutos de duração do filme aproximadamente, eu percebi que embora desde antes mesmo de o assistir, eu já esperava um filme peculiar, mas o que estava presenciando era ainda mais estranho e indulgente. Na internet, entre vários textos que li, boa parte deles contém referências de diretores e filmes que se relacionam com o filme, e essas referências não são infundadas - podem ser reparadas logo de cara. Eu estava definitivamente marcado pela experiência, mas achei que havia ainda mais ali para absorver e precisaria de uma revisão. Então ao invés de adiar, resolvi fazer logo isso, enquanto o filme ainda cozinhava na minha cabeça. Surpreendente o quanto isso expandiu a minha compreensão e apreciação com ele, e durante a revisão já estava sendo recompensado.

O filme começa estranhamente com formas e espectros luminosos abstratos em um fundo negro, com sons fonemáticos indicando um alienígena programando uma linguagem, formando palavras do idioma inglês. À essa altura já temos ecos de Kubrick, particularmente de cenas de 2001: Uma Odisseia no Espaço (2001: A Space Odyssey, 1968), com trilha sonora drone de frequências contínuas e batidas repetidas. Em seguida, temos o misterioso motoqueiro que acompanha a trajetória da protagonista Laura (Scarlett Johansson) em todo o filme. Ele vai até a beira de uma estrada, e da mata leva o corpo de uma mulher até seu veículo. Na próxima cena, Laura (seu nome não é citado no filme ou presente nos créditos) aparece pela primeira vez. Em um imenso vazio com fundo branco, ela está nua, e a mulher raptada na cena anterior está no chão. Ela se veste com as roupas da mulher, que está deitada de olhos abertos com uma lágrima caindo em seu rosto. Quando termina seu procedimento, Laura percebe um pequeno inseto na barriga da mulher, pega em sua mão, e o examina, tendo aparentemente o seu primeiro contato com uma forma viva da Terra.

À partir disso, Laura sai em sua van pelas ruas da Escócia, interagindo com transeuntes de dentro de sua van, todos do sexo masculino. Essas cenas foram feitas com câmeras escondidas dentro da van, os homens abordados só descobriram fazer parte do filme após as cenas. Ela se comunica com os homens, quase mantendo um padrão - eles se abrem nas indagações, e são atraídos por ela. Inicialmente estes envolvimentos jamais ultrapassam um nível pessoal considerável. Dentre estes homens, um deles embarca em uma carona com ela, que o leva até um prédio abandonado. Ela o seduz e entra na escuridão do estabelecimento. Ele a segue, sem saber no que está se metendo. O interior se revela um breu imenso e vazio, com uma superfície que reflete os corpos e objetos. Ela anda de costas para o homem e vai se despindo, ele a segue e se despe também, porém enquanto segue os passos dela, começa a ser absorvido pela superfície, que toma forma liquida, quase gelatinosa. Ela se vira, refaz os passos e se veste novamente. E repete esta operação com outros homens seguidamente.

As questões acerca de sua missão não são esclarecidas explicitamente - mas também não demonstram necessidade de serem respondidas explicitamente. Assumimos uma perspectiva altamente subjetiva acompanhando as ações da alienígena, e já sabemos o suficiente. Após as suas atuações com os homens, em certo momento descobrimos o que vem a seguir. Dentro do abismo líquido, os seus corpos passam por transformações e se tornam um fluído negro, que através de uma plataforma são enviados para uma luz vermelha - precisamos de mais que isso para deduzir o que acontece aí? Estes aspectos não são fundamentais para a narrativa, possuem função pragmática apenas. O que interessa é acompanhar a trajetória da alienígena na Terra, já sabemos que sua missão é a abdução dos homens, pelo método de atração sexual, sem interações pessoais.

Acompanhando a sociedade pela perspectiva da outsider, nos identificamos com o olhar dela - à principio indiferente. A cultura do ambiente urbano escocês não é diferente de qualquer outro. A rotina de trabalho, e cotidiano, que vão entrando ao entendimento da alienígena (assim como a nossa familiarização gradativa com a sociedade). Mais complicado é o indivíduo. Nos contatos com os homens que seduz, o que ocorre é a atração deles pelo seu corpo, motivados pelo instinto sexual. No momento em que ela tropeça na calçada, é assistida pelos indivíduos, em uma ação solidária de empatia. Dentro de sua van, é abordada por vários homens que tentam a emboscar, possivelmente para roubar seu veículo. Ela também acompanha um incidente de afogamento na praia, e tentativas sem sucesso de salvamento entre os envolvidos. À todos esses acontecimentos, ela reage com indiferença, a natureza humana não faz parte dela. Ela apenas busca realizar sua função, dialogando superficialmente com os homens em seu caminho, se expressando artificialmente em suas comunicações, com feições e gestos, e as desfazendo imediatamente quando já não as precisa.

O seu entendimento do mundo se acumula de forma gradual (como por exemplo quando ela vai ao shopping, e vê mulheres se produzindo com objetivo estético, então copia este comportamento). Ela apresenta familiaridade com a maquina (seu carro), e outros aparelhos. A gama de experiências e sensações vão se ampliando cada vez mais durante sua estadia, dirigindo pelas ruas, e em momentos, sendo levada pelos acasos. Ela sente o sangue de um homem em suas mãos, e examina a substância. Em certo momento, em um grande espaço escuro, ela aparece parada e inexpressiva, e o motoqueiro misterioso presente desde o início reaparece (obviamente ele é um extraterrestre também, com o que tudo indica, em um encargo de supervisão de Laura). Ele examina seu rosto, e olha diretamente para os olhos dela, possivelmente para garantir que ela permanece inalterada, não tendo se modificado durante sua missão.

O ponto de virada é quando Laura encontra, em seu procedimento padrão, um homem desfigurado - o ator que o interpreta realmente possui neurofibromatose, já que o diretor não queria usar próteses. O homem entra em seu carro, calado (diferente dos outros homens), e Laura o aborda da mesma forma que os outros homens, com as mesmas perguntas, e o corteja ao mesmo tempo. Ele, constrangido e introvertido não consegue acreditar na situação. Já Laura, não o distingue dos outros homens, fazendo perguntas que poderiam ser consideradas ingênuas ou maliciosas dada as circunstâncias. Ela se identifica com a condição solitária do homem, mesmo sem conseguir identificar as causas disso. A face exterior não significa nada à alienígena, gerando uma interação de maior abertura pessoal do que com qualquer outro dos homens anteriormente, ele não emite o desejo puramente sexual, mas primeiramente de contato, tão simplesmente. Ela segue o plano, levando o homem ao mesmo lugar no qual seduziu os outros, porém, no fim das contas, o resgata e deixa-o ir embora.

Com isso, a extraterrestre revela sua consciência humana em potencial, com demonstrações de emoção, desejo, curiosidade e dúvida, quando antes agia por programação e indiferença. Não que ela estivesse agindo sem qualquer noção de suas ações, mas dentro de uma natureza e compreensão de outra espécie. Quando se dá diante de um ser semelhante, de comportamento reservado, cria-se uma interseção. E o broto criado nesta eventualidade ascende à uma crise. Ela analisa o seu corpo e rosto, algo perfeitamente comum entre os seres humanos, por diversos motivos que vão da vaidade até a dúvida na identidade de gênero - pauta recorrentes na época atual. Ela deseja se adaptar à condição humana, mas não é capaz disso, a anatomia de seu corpo não a permite. Este conflito existencial, apesar de não possuir nenhum equivalente idêntico, possui semelhantes na realidade. Pessoas que não se sentem confortáveis no próprio corpo, ou que são incapazes das mais comuns atividades devido à problemas de saúde. 

O filme agrada muito pela beleza visual, e realmente a cinematografia, a condução lenta e contempladora relembra muito os filmes de Tarkovsky, assim como o drama existencial, do ponto de vista feminino (com os toques de erotismo) lembram algumas obras-primas de Antonioni. Mas os méritos não ficam nestas semelhanças. O desenvolvimento que jamais sucumbe ao melodrama, sempre acompanhando os passos de Laura sem interferir na "temperatura" das situações, nas assimilações que a personagem vai retendo, bem como na naturalidade dos acontecimentos que a envolvem (principalmente no ultimo ato), pouco movimento, planos abertos, são diversas escolhas corajosas. Jonathan Glazer faz o filme do jeito que deseja, e consegue criar inúmeras cenas e imagens memoráveis. Sem pensar muito, Scarlett Johansson entrega a melhor atuação de sua carreira até agora, simplesmente impecável. No inicio, temos uma personagem examinando uma criatura que nunca viu, e no fim transcorrendo os próprios limites, do começo ao fim, e voltando as referências, como Kubrick e Tarkovksy fizeram, um filme sobre o (dramático) encontro com o desconhecido.

8,5/10







 


















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